quarta-feira, 30 de maio de 2012

Um conto fantástico para perceber a magia da leitura


Contos do Século XX
314

Perdido num Livro

Entrei pela porta de um livro e fechei-me lá dentro com as palavras acesas e as luzes apagadas.
A minha mãe deu dez voltas à casa à minha procura. «Onde é que o miúdo se terá metido?» Com
medo de ser encontrado, eu saltava das páginas pares para as ímpares e enrodilhava-me, feito
bicho-de-conta, entre dois parêntesis ou, por ser muito magro, atrás de um ponto de exclamação.
Era a primeira vez na minha vida que eu me fechava dentro de um livro. Antes já me achara dentro de um armário, na gaveta de uma cómoda, no sótão e na despensa. Agora, afoito e insensato, dava um passo de gigante no meu aventuroso destino de menino dos assombros, e escondia-me dentro de um livro, disposto a permanecer ali o tempo que fosse necessário até a minha mãe desistir de me procurar e até todos me darem definitiva e irremediavelmente como desaparecido.
O livro era agora o meu refúgio e a minha casa, uma casa onde tudo era imprevisível e estranho e onde as letras tinham espessura e cheiro como se fossem humanas. Confesso que me perdi lá dentro, como já antes me perdera no labirinto de esferovite do parque de diversões que animava os meses de Verão da minha terra.
– O que fazes tu aqui se não pertences a esta história? – perguntou-me um espadachim trajando
a preceito, enquanto me apontava ao peito o seu aguçado florete.
– Nada, desculpe – respondi –, eu estou aqui de passagem, para fugir aos castigos da
minha mãe. Se me tirar isso do peito, eu prometo que saio já do seu caminho.
– É esta a minha sina – ironizou o espadachim –: só me aparecem cobardes pela frente.
E agora até invocam as mães perseguidoras para escaparem à minha fúria primitiva. Quanto
tempo terei ainda de esperar para que me caiba em sorte o duelo que me dê a glória?
Claro que eu não sabia o que havia de responder-lhe. Eu nem sequer sabia que livro era aquele e que personagem era aquela que tentava agora trespassar-me com um afiado florete do mais fino aço. Quantas peripécias e sobressaltos me estariam ainda reservados no meu périplo de miúdo em fuga pelas páginas de um livro?
Perplexo e exausto, decidi mudar de capítulo, esperando encontrar uma etapa mais apaziguadora
da narrativa. Mas enganava-me. Ainda mal me aventurara naquelas páginas desconhecidas quando dois cavaleiros galopando a toda a brida me obrigaram a saltar para a berma para não ser trucidado pelos cascos dos cavalos. Confesso que começava a sentir saudades da minha mãe, dos seus gritos ecoando pela casa enquanto me procurava, das punições injustas por abusos que eu não cometera. É verdade, tinha saudades da minha mãe, esperando-me à porta do quintal com chinelos e avental e com uma chibata de pôr atrevidos na ordem.
Eu entrara inadvertidamente naquele livro, mais pelo prazer da aventura do que pelo da leitura. Queria fazer uma partida à família e aquela pareceu-me ser a forma mais engenhosa e eficaz. Agora estava perdido dentro de um livro e não conseguia encontrar a porta que me devolvesse ao pequeno mundo do exterior onde estavam os brinquedos, os trabalhos de casa, os bichos-da-seda, os cromos do futebol e a minha fantástica colecção de conchas. Eu queria regressar e não podia. Sobretudo não sabia como.
Tornei-me errante, de capítulo para capítulo, de página para página, deixando-me aprisionar em enredos que desconhecia, dialogando com personagens que me eram completamente estranhas e, em alguns casos, hostis. Sentia-me perdido e ameaçado. A minha existência era agora tão insignificante e minúscula como um ponto de interrogação ou uma vírgula daquele livro interminável e sufocante. Sobretudo como um ponto de interrogação, já que tudo à minha volta me suscitava dúvidas e perguntas para as quais o livro não tinha respostaCorri pelas margens do texto, tentando afastar-me de tudo quanto no livro era intriga, mistério e sobressalto. Pensei mesmo em suicidar-me, atirando-me da página abaixo ou tentando cair fora do livro. Mas não logrei atingir nenhum desses objectivos, porque o livro operava o prodígio de me devolver sempre ao coração do seu enredo, envolvendo-me em novas peripécias. Eu estava exausto e queria recuperar a minha liberdade, mas não conseguia ouvir a voz da minha mãe a perguntar pela casa:
– Santo Deus, onde é que este maldito miúdo se terá metido?
Sentia que a palavra «salvação» me abandonara e que nunca chegaria a fazer parte do meu parco vocabulário de aprendiz do mundo. Estava perdido. Queria rezar, mas não sabia nenhuma oração de cor, porque os meus pais não eram devotos, nem a ideia de sagrado tinha o que quer que fosse a ver com a minha casa.
Tentei reconstituir os passos que me haviam levado ao interior do livro. Tudo era, para mim, claríssimo. Depois de fugir do quarto e da cozinha, sempre com a minha mãe no meu encalço, escondi-me atrás do sofá da sala, de onde saltei para uma estante. Como já não me restasse alternativa, ao ouvir a voz da minha mãe, estridente, a encher a sala, abri a porta de um livro e vi-me envolvido na situação bizarra que tenho vindo a descrever. Passara da condição de miúdo irreverente à de personagem à força, e agora queria regressar ao estádio primordial, apesar de todos os incómodos que me causava.
– Mas o que faz esta criatura aqui, se eu não a inventei, se não a escrevi, se ela nunca chegou
a passar-me pela cabeça?
Quem seria aquele homenzinho pálido e de voz esganiçada que me interpelava, de caneta na
mão, amaneirado e fora de si? Num ápice, veio-me a resposta ao espírito: só podia ser o autor.
E era agora a única que me faltava: ter pela frente o autor a pedir-me contas da minha inocente
e acidental presença na obra com que, se calhar, queria ver-se imortalizado.
Passei dias neste tormento de não conseguir dar com a porta por onde entrara, logo por azar eu que até gostava de ler. O livro passara de paixão a armadilha, de fascínio a areia movediça, daquelas que engolem homens, animais, sombras e até reflexos da luz. Assinara, como leitor, a minha sentença final, ao tornar-me personagem.
– Mãe, mãe, vem buscar-me, porque eu tenho fome, sono e sede e eu juro que nunca mais fujo quando tu me quiseres castigar. Prometo, mãe!
Eu bem podia gritar e prometer que não encontrava maneira de me libertar daquele suplício.
Ao longo das páginas do livro já tivera vários nomes, vários rostos, vários destinos e várias mortes. Uma coisa só havia que eu não conseguia ter: a minha liberdade de volta.
Quando, já perto  dei conta de que era a porta dolivro que se abria para eu regressar à vida. Saltei para a prateleira da estante e depois para o chão. Estava livre, mas nem por isso menos perplexo com tudo o que estava a acontecer-me.
Descobri que tinham passado muitos anos. A minha mãe morrera uns anos antes e eu, já com idade para ser meu pai, estava sentado no sofá de couro negro a ler um livro sobre a metamorfose dos animais fantásticos. Tudo me era agora familiarmente estranho e absurdo. O que fazia eu ali, se não podia chamar pela minha mãe e muito menos confrontar-me comigo trinta anos mais velho? Estava de novo perdido, agora fora do livro e não dentro dele. E imagino que se interroguem sobre a forma como eu descobri que tudo aquilo se passara enquanto eu estive ausente, no interior do livro. Foi simples: uma personagem predissera-me esta sina estonteante e brutal, mas eu não quis acreditar nas suas palavras.
Dividido entre duas tragédias, optei pela mais discreta e previsível. Saltei para dentro do livro, levando comigo alguns brinquedos, duas fotografias da minha mãe e um cristal de quartzo. Agora, estou sentado num parágrafo curto do capítulo final e oiço, ou imagino ouvir, a voz da minha mãe dentro do livro a ameaçar-me:
– Se não perdes essa mania dos livros, nunca serás alguém na vida. E agora fazes o favor de
me dizer como se sai daqui, porque eu ainda tenho que ir fazer o jantar.
                                                                                                                  
                                                                                                                José Jorge Letria, A Mão Esquerda de Cervantes,

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